“Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de um número superior a 100 crianças das mais diversas idades, indo desde os 8 aos 16 anos. Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa. São chamados de “Capitães da Areia” porque o cais é o seu quartel-general” – Capitães da Areia, 1937 (Jorge Amado).
Esse trecho da consagrada obra do escritor baiano Jorge Amado, Capitães da Areia, traz o relato, inspirado na realidade soteropolitana, sobre crianças de rua, abandonadas, que viviam de furtos para sobreviver. No Brasil a fora, por muito tempo, não havia uma estrutura estatal de proteção dos direitos das crianças e adolescentes, relegando essa função para fundações religiosas e de caridade.
Em 1927 o então presidente da República, o último da era do “Café com Leite”, Washington Luiz assinava o Decreto que estabelecia o então Código dos Menores, o que à época, significou um avanço na legislação nacional. Até então, com base no Código Penal de 1890, redigido no crepúsculo do Império, crianças podiam ser levadas aos tribunais a partir dos 9 anos, em pé de igualdade com
criminosos adultos.
Apesar da lei de 1927, a sociedade e o Estado negligenciaram gerações e mais gerações de filhos dessa pátria, desprovidos de direitos e acesso à serviços básicos. Índices de mortalidade infantil, analfabetismo, exploração do trabalho infantil e violências das mais cruéis e variadas, colocavam o Brasil em posições vexatórias nas medições sobre desenvolvimento humano e comprometeram o desenvolvimento do país por décadas.
Não bastasse a realidade cruel de um país do chamado Terceiro Mundo, a legislação insuficiente não tratava as crianças e adolescentes como sujeitos de direito, mas como um simulacro de “propriedade” dos pais, assim como muito tempo mulheres foram consideradas como propriedade de seus maridos ou dos escravos em relação aos seus senhores.
Com a promulgação da Constituição de 1988, e na esteira da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1990 foi sancionada a Lei 8.069/1990: nascia o Estatuto da Criança e do Adolescente ou, simplesmente, ECA. A nova lei, agora, passa a reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direito de fato e garante uma série de garantias fundamentais, em harmonia com a preservação da base da nossa sociedade: a família. O Estatuto colocou o Brasil como referência na área diante da
comunidade internacional.
Todavia, quase um século depois de Capitães da Areia e 34 anos dos avanços do ECA, ainda vemos crianças nos semáforos e em vielas, negligenciadas e expostas a todo tipo de violência. É preciso aperfeiçoar políticas públicas que de fato venham a combater as desigualdades e as violências sofridas pelas nossas crianças e adolescentes, como Gilberto Dimenstein denúncia premiado “Cidadão de Papel”, de 1994. Não é possível pensar em desenvolvimento sem garantir dignidade de fato a todos, começando com aquilo que é a nossa maior riqueza: os filhos dessa nação.
Preservar a família e a autoridade dos pais, passa pelo respeito e pela promoção dos direitos de todos. Esse é um dever constitucional e geral: da família, da sociedade e do Estado.